quarta-feira, 30 de abril de 2014

A dependência dos livros - edição Abril de 2014


Foi um mês de grandes compras, quase todas elas com excelentes promoções. Algumas destas aquisições deixaram-me particularmente feliz, nomeadamente o “Facas” do Valério Romão, o único livro que me faltava deste autor, e “O Remorso de Baltazar Serapião” do Valter Hugo Mãe (sim, as maiúsculas foram intencionais), o primeiro deste autor a entrar na minha biblioteca.

Com a compra de “Molloy”, tenho neste momento todos os livros da célebre trilogia de Samuel Beckett, que começará a ser lida num futuro próximo. Ah, e claro que não me posso esquecer da “Biografia Involuntária dos Amantes” do João Tordo. Estive no lançamento do livro, na Fundação José Saramago e, roam-se de inveja, tenho-o autografado!

O mês fechou com chave de ouro com a ida a um alfarrabista (de onde saí com “Eugénia Grandet” do Balzac), com saldos na The Folio Society (que em conjunto com um vale me valeram uma deslumbrante edição do “Oliver Twist” do Dickens por tuta-e-meia) e uma vitória num passatempo do blogue O Planeta Livro (obrigado pelo “Os Transparentes” do Ondjaki!).

Deixo-vos com a lista completa das compras do mês:

A Rainha Inglesa de Portugal: Filipa de Lencastre”, Manuela Santos Silva, Círculo de Leitores
Biografia Involuntária dos Amantes”, João Tordo, Alfaguara
Eugénia Grandet” Balzac, Ediclube
Facas”, Valério Romão, Companhia das Ilhas
Molloy”, Samuel Beckett, Relógio D'Água
O Barril Mágico”, Bernard Malamud, Cavalo de Ferro
O Remorso de Baltazar Serapião”, Valter Hugo Mãe, Alfaguara
Oliver Twist”, Charles Dickens, Folio
Os Transparentes”, Ondjaki, Círculo de Leitores
“Rainhas de Portugal e Espanha: Margarida de Áustria, Isabel de Bourbon”, Pilar Pérez Canto, Esperanza Mó Romero, Laura Oliván Santaliestra, Círculo de Leitores

domingo, 27 de abril de 2014

Os escritores mais influentes da actualidade, segundo a Time


Binyavanga Wainaina é um escritor. É queniano. É homossexual. E, segundo a revista Time, é uma das 100 personalidades mais influentes do mundo em 2014. Porquê? Basta investigar um pouco sobre o assunto para perceber. Na sequência de uma vaga de leis anti-gay aprovadas em África, Wainaina decidiu, em Janeiro deste ano, assumir publicamente a sua homossexualidade com a publicação do conto “I Am a Homosexual, Mum”. Mas deixemos Wainaina falar:

“I am twenty nine. It is 11 July, 2000. I, Binyavanga Wainaina, quite honestly swear I have known I am a homosexual since I was five. I have never touched a man sexually. I have slept with three women in my life. One woman, successfully. Only once with her. It was amazing. But the next day, I was not able to.
It will take me five years after my mother’s death to find a man who will give me a massage and some brief, paid-for love. In Earl’s Court, London. And I will be freed, and tell my best friend, who will surprise me by understanding, without understanding. I will tell him what I did, but not tell him I am gay. I cannot say the word gay until I am thirty nine, four years after that brief massage encounter. Today, it is 18 January 2013, and I am forty three.”
Wainaina é uma das vozes mais promissoras da literatura africana, tendo ganho em 2002 o Caine Prize for African Writing que distingue, anualmente, o melhor conto em inglês publicado por um autor africano.
Dos quatro escritores incluídos na listagem da Time, Wainaina é o único não editado em Portugal. Arundhati Roy é a mais prestigiada do grupo, tendo vencido em 1997 o The Man Booker Prize com o livro “O Deus das Pequenas Coisas”, editado entre nós pela ASA. Para além deste livro, estão ainda publicadas em Portugal três outras obras desta autora indiana: “Pelo Bem Comum” e "O Fim da Imaginação" (ASA) e “O Perfil do Monstro” (Bertrand).

Completam o grupo dos escritores John Green, um autor juvenil com três livros publicados em Portugal (“Cidades de Papel” pela Presença; “À Procura de Alaska” e “A Culpa é das Estrelas” pela ASA) e Donna Tartt, a vencedora deste ano do Pulitzer Prize for Fiction, de quem a Dom Quixote publicou "A História Secreta" e "O Pequeno Amigo" (shortlist do Orange Prize for Fiction em 2003).

quarta-feira, 23 de abril de 2014

O Dia Mundial do Livro em Portugal



23 de Abril é uma data marcante no mundo literário. Shakespeare e Cervantes morreram a 23 de Abril de 1616. Também a 23 de Abril, mas de 1899, Nabokov nascia e, 3 anos depois, nesse mesmo dia, nascia o prémio Nobel Halldór Laxness. Mais perto dos nossos dias, em 1981, Josep Pla, o prestigiado autor catalão, morreria, pasme-se, também a 23 de Abril. Autores do mundo, cuidado com este dia! Fechem-se nos vossos quartos a dormir e voltem apenas ao mundo no dia 24, não vá o diabo tecê-las...

Sendo 23 de Abril um íman de acontecimentos relevantes na área da literatura, a UNESCO, em 1995, decidiu estabelecê-lo como o Dia Mundial do Livro, com o intuito de criar acções de promoção da leitura. E Portugal não é excepção nestas comemorações, com várias iniciativas que prometem um dia agitado para os leitores mais atentos. Já decidiram como vão celebrar o dia? Aqui ficam algumas opções.


Fundação José Saramago

Inauguração da exposição de desenhos de Rogério Ribeiro inspirados em “O Ano de 1993” de José Saramago.



Mariposa Azual

Todos os livros com 50% de desconto, é a promessa desta editora independente de cujo catálogo se destacam as obras “Groto Sato” de Raquel Nobre Guerra (Prémio Primeira Obra na última edição dos prémios PEN Clube Português) e “Obra” de Adília Lopes (que reúne 15 livros da poetisa, com gravuras de Paula Rego).


Wook

A maior (e melhor) livraria online portuguesa presenteia os clientes com 25% de desconto em encomendas (20% de desconto directo + 5% acumulado na Plano Poupança Leitura, para utilizar numa compra futura). São abrangidos pela promoção todos os livros, excepto eBooks, livros escolares e técnicos, encomendados no dia 23 de Abril e pagos até ao dia 25 de Abril, sendo também os portes gratuitos para Portugal Continental (30% de desconto nos portes de envio para os Açores e Madeira).


Bertrand

Mais de 1000 livros espalhados pelo país. Onde exactamente? Mistério…



Leya


Um prato cheio, é o que a Leya tem para oferecer aos seus leitores neste dia. Ora vejam bem: entre as 11h e as 15h a equipa editorial do grupo andará pelas livrarias Bulhosa, Almedina e El Corte Inglês, de Lisboa e Oeiras, a prestar aconselhamento aos leitores; nas livrarias Leya e parceiras, na compra de livros recebe-se de oferta “Geração X” de Douglas Coupland e, entre as 18h e as 19h há a Hora Leya, com descontos até 45%; há ainda cartoonistas a fazerem caricaturas de clientes, montras concebidas por escritores e várias sessões de autógrafos, numa sucessão de acontecimentos capaz de deixar sem fôlego o mais energético dos seres. Podem consultar aqui todas as actividades.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Gabriel García Márquez e a Crónica de uma Vida Recordada


“Nós, os inventores de histórias, que acreditamos em tudo, sentimos o direito de acreditar que não é ainda demasiado tarde para nos empenharmos na criação da utopia oposta. Uma nova e imensa utopia de vida, em que ninguém poderá decidir pelos outros como irão morrer, em que o amor se revelará verdadeiro e a felicidade será possível, e em que as raças condenadas a cem anos de solidão terão, finalmente e para sempre, uma segunda oportunidade na terra.” (Gabriel Gacía Márquez, "The Solitude of Latin America", Nobel Lecture)


Gabriel García Márquez tinha um livro dentro de si. Um livro sobre Aracataca. Sobre o mundo místico, onde tudo era possível, em que o real era continuamente questionado por fenómenos que transcendiam os limites da compreensão. E assim, na infância passada com os seus avós naquele mitológico universo que sempre o perseguiria, Gabo encontra anos depois a inspiração para escrever um romance em que, segundo ele, tudo aconteceria.

Uma sucessão de Aurelianos e de Josés Arcadios, que ao longo das gerações vão conhecendo diferentes existências. Dois nomes que se impõem àqueles que os carregam, que são ocupados por diferentes corpos que representam uma mesma essência. Sempre em Macondo, uma nova Aracataca, uma representação do que Aracataca foi para García Márquez.

Olho para “Cem Anos de Solidão”, para a fotocópia da árvore genealógica dos Buendía que a minha melhor amiga me deu quando iniciei a leitura (para que não me perdesse), e sinto que o li há demasiado tempo, numa altura em que talvez não estivesse preparado para descodificar tudo o que o livro tinha para me dar. Restam-me recordações distantes de um mundo encantado, em que a morte e vida se confundiam e personagens se recusavam a partir. Também García Márquez não partirá.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Saramago a metade do preço


Desde o anúncio de que a obra de Saramago deixaria de ser publicada pela Leya que uma questão se impunha: quando começariam as grandes promoções com os livros do autor? E passados quatro meses cá estão elas. Na Leyonline está disponível, até 21 de Abril, uma selecção de obras (ampla, mas à qual faltam os títulos principais) com 50% de desconto. A mesma promoção está também disponível na Almedina, mas neste caso a selecção é um pouco mais restrita (os títulos principais continuam de fora) mas a duração é maior – a promoção estará disponível até 27 de Maio.

Um dos livros que se encontra nos dois sites é “O Homem Duplicado” mas, se estão a pensar comprá-lo, tenham em atenção que a FNAC também tem uma promoção Saramago, em que oferece este livro na compra de um dos livros do autor integrados na promoção, até 23 de Abril (só neste promoção é que está disponível o “Memorial do Convento” ou “O Ano da Morte de Ricardo Reis”). Recomendo-vos o seguinte: em vez de pagarem 8.45€ por ele na Almedina ou na loja online da Leya, comprem na FNAC o “O Conto da Ilha Desconhecida” por 5.9€ e recebam o “O Homem Duplicado" de borla. Ficam com dois livros e poupam mais de 2€. Se gostarem de literatura infantil, melhor, na pior das hipóteses ficam com uma prenda em stock para uma criança.

Deixo-vos com alguns dos livros mais emblemáticos de Saramago que podem encontrar na Leyaonline e na Almedina a metade do preço:

História do Cerco de Lisboa” – 8.45€
As Intermitências da Morte” – 8.45€
Ensaio Sobre a Lucidez” – 8.45€
Todos os Nomes” – 7.45€

quinta-feira, 10 de abril de 2014

A ESTANTE é lançada hoje pela FNAC


“No dia 10 de Abril a FNAC vai oferecer estantes”, referia a primeira de um conjunto de mensagens enigmáticas que a FNAC colocou na sua página de Facebook. A grande maioria das pessoas terá pensado que se tratava de mais um passatempo, expectavelmente com alguma ligação ao mundo dos livros. E de facto, é de livros que a FNAC nos quer falar, mas a respeito de algo bem mais excitante que um passatempo.

Hoje, pelas 18h30, juntam-se na FNAC do Chiado Valter Hugo Mãe, Teolinda Gersão e Rui Zink para apresentarem a ESTANTE, uma revista trimestral com a chancela da FNAC, que promete boas leituras para os amantes de literatura, tendo o primeiro número como tema central os 800 anos da língua portuguesa. De referir que a primeira ESTANTE, que será gratuita (os restantes números custarão 1.5€, segundo o que consegui apurar), terá um editorial da autoria de Valter Hugo Mãe, que se for tão bom como o texto que escreveu para a Granta estaremos certamente muito bem servidos.

Segundo Jorge Guerra e Paz, responsável de Comunicação Institucional e Cultural da FNAC, “esta é uma revista para viver fora da estante. Sem limites de suporte. É uma revista para quem não se cansa de folhear páginas, de sentir o papel nas mãos e de o ler. A ESTANTE são páginas para amantes de livros, sobre livros, autores, ideias, mas também sobre o mundo em que vivemos e como interagimos.”

A Estante, que será a revista de cultura com maior tiragem em Portugal, contará com quatro secções: vírgula (introdução e breves), parênteses (grandes entrevistas e artigos de fundo), reticências (novidades literárias) e ponto de interrogação (infantil).

Parece-me sinceramente que esta é uma acção muito bem pensada pela FNAC, que lhe granjeará certamente uma maior credibilidade institucional e lhe permitirá cada vez mais apresentar-se como um dinamizador cultural na área da literatura e não apenas como uma loja onde se compram livros. Resta-nos agora esperar pela revista, que estará pelas lojas a partir de dia 11 de Abril. Para já, fiquemos com o vídeo de apresentação.




segunda-feira, 7 de abril de 2014

Em estado crítico: "Hiroshima Meu Amor" de Marguerite Duras


“O tempo virá em que não saberemos que nome dar ao que nos unirá. O nome apagar-se-á a pouco e pouco da nossa memória.”


Hiroshima. Nevers. O que une estes dois locais? A destruição? Que destruição poderá Nevers conter que se iguale a uma cidade dizimada por uma bomba atómica? Que horrores terão sido vividos nas suas ruas? De quantas mortes desnecessárias terá sido palco? Nevers. Uma aparentemente doce e bucólica terra francesa, a terra que viu morrer o amor.

Uma mulher, uma actriz, está em Hiroshima no pós-guerra a rodar um filme sobre a paz. Que outro tipo de filme se poderia fazer em Hiroshima, questiona. O passado é, em Hiroshima, um fantasma que a persegue. Na vida que regressou ao normal, na cidade plenamente reconstruída, onde a catástrofe não é mais do que uma memória longínqua que se afugenta, há uma ameaça eminente de que o que Hiroshima viveu seja esquecido. Hiroshima tem de ser lembrada sempre, como o têm de ser todas as grandes tragédias. Mas a vida teima em cobrir os acontecimentos desagradáveis com um véu apaziguador. Até que não restem mais do que sombras. Até que comecemos a duvidar que o que aconteceu aconteceu mesmo.

Um amor em Hiroshima. Um homem casado, como ela, que nos seus braços sonha com um grande amor. Um homem que é mais do que aquele homem japonês, que é um arquétipo do amante proibido, uma recordação viva do amor vivido em Nevers. Em Hiroshima, a mulher percebe que ela própria tem vindo a esquecer, que a dor dilacerante que parecia capaz de a matar acabou por sossegar e, com o avançar dos dias, a vida continuou, apesar da imagem de destruição absoluta. Experimentou o maior dos horrores e agora vive, com uma aparência de normalidade.

O que une Hiroshima e Nevers? A destruição. A destruição de que pensamos não conseguir emergir. Mas também o esquecimento, a traição de uma vida que o continua a ser, a insustentável leveza do ser de que Kundera falaria.

“Hiroshima Meu Amor”, o guião que valeu a Marguerite Duras a nomeação para o Óscar de Melhor Argumento Original, foi também a primeira longa-metragem de Alain Resnais, protagonizada por Emmanuelle Riva. O filme tem o mérito de, mantendo-se fiel à visão de Duras, a ter dotado de imagens icónicas cuja beleza nada fica a dever às palavras escritas. 

Já que o livro, em tempos editado pela Quetzal, é muito difícil de encontrar hoje em dia, recomendo-vos vivamente o filme, cuja versão restaurada foi recentemente lançada em DVD pela Leopardo Filmes.


Classificação: 17/20


sábado, 5 de abril de 2014

Discurso Directo: Duras sem filtro


“Worn Out With Desire to Write”: Documentário sobre Marguerite Duras, realizado pouco tempo depois da publicação de “O Amante” e da atribuição do Prémio Goncourt.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

O medo do esquecimento: o centenário de Marguerite Duras


Duras. Um mito construído sobre os escombros de uma infância infeliz na Indochina. Uma das figuras de proa de cultura francesa e europeia do século XX. Uma mulher feroz, corajosa, habituada a chocar, a lutar por si e por aquilo em que acredita. Um desejo sexual lancinante, que celebra a sua condição de mulher, que a conduz de homem em homem à procura de uma plenitude amorosa que talvez nunca tenha encontrado. À procura do seu irmão Paul, do seu adorado irmão Paul, que tão cedo a deixou e que será sempre o homem da sua vida. Mas acima de tudo, a vida de Marguerite Duras será sempre uma libertação da sua mãe, do amor absoluto que tem por ela e do ódio dilacerante que sente por nunca ter sido correspondida. A mãe. Sempre a mãe em Duras.

Tudo o que Duras foi, tudo o que escreveu, tudo o que sentiu, tudo tem origem na Indochina, a terra em que nasceu há 100 anos e onde viveu até quase à idade adulta, num estatuto ambíguo de membro da raça privilegiada mas pobre. Nessa altura Marguerite Duras era ainda Marguerite Donnadieu, a filha mais nova de um casal de viúvos que voltara a casar. Os primeiros anos de Marguerite são marcados por acontecimentos que afectarão a sua vida de forma profunda: a morte do pai e a dinâmica com a mãe e com os seus dois irmãos, particularmente com o mais velho, o irmão que apelidaria de assassino e criminoso, e que a aterrorizaria, a ela e a Paul, durante toda a infância. O amor incondicional da mãe pelo filho mais velho, o seu filho, aquele que sente despudoradamente como mais seu, cria feridas em Duras que nunca cicatrizariam.

É também em muito nova que, de acordo com o testemunho de alguns amigos próximos a quem terá revelado o caso, teve a sua primeira experiência sexual, aos cinco anos, com um rapaz vietnamita de cerca de dez anos. E esse acontecimento é de grande importância. A experiência não é consensual, não que tenha sido também forçada, é sobretudo uma experiência inconsciente da parte dela que em tão tenra idade não consegue compreender o que se passava. Mas há uma noção de proibido que fica sempre consigo. Se uma experiência sexual naquela idade é por si só um facto relevante e gerador de traumas, o facto de ter sido com um vietnamita, algo mal-visto pela sociedade colonialista, foi agravando esse peso.

A sexualidade de Marguerite tornar-se-á consciente depois do período que mitologicamente ficaria conhecido como “as barragens”, referindo-se à trágica compra de uma concessão pela sua mãe de uma terra que se revelaria incultivável, invadida durante grande parte do ano pela água do mar. A devastação dessa experiência ficaria para sempre eternizada em “Uma Barragem Contra o Pacífico”, retomada depois, de forma mais pessoal ainda, em “O Amante”. A situação económica da família atinge um ponto de ruptura nesta fase, gastas que foram as suas economias na concessão e na tentativa desesperada de edificar barragens que impedissem o avanço das águas. Condenados a um estado de quase profunda miséria, Marguerite percebe que o interesse que suscita nos homens pode ser uma arma a favor de toda a sua família, empenhando-se na procura de um homem rico que, em troca de jogos de sedução, lhe dê dinheiro. Assim começa Marguerite a traçar o caminho que a levará ao romance com o amante chinês milionário, que tão fortemente a marcará. E nesse caminho Marguerite Donnadieu converte-se em Duras, na essência de Duras, que se viria a materializar na adopção do nome aquando do início da sua carreira literária. Duras, o nome da terra de seu pai, o pai que quase não conheceu, o primeiro homem inalcançável da vida de Duras.

Por fim, quando o hipotético casamento com o amante chinês se torna definitivamente numa impossibilidade, Marguerite parte para França. Voltará pouco tempo depois à Indochina, para terminar os estudos, e depois volta a partir para nunca mais voltar, libertando-se finalmente da loucura da sua mãe, do seu desespero torrencial, da distância intransponível que as separe. Duras parte para viver. Uma vida que testemunha os grandes acontecimentos do século, com um papel bastante activo na Resistência Francesa durante a ocupação nazi, que valeria ao seu marido Robert Antelme a deportação para o campo de concentração de Dachau, onde seria encontrado, já após a libertação, por François Miterrand, uma figura muito próxima de Duras e de Antelme na altura e que era o líder do grupo de resistentes a que pertenciam.

A vida de Duras será sempre marcada por relações amorosas tumultuosas. O seu casamento com Antelme era sobretudo um pacto de amigos antes da Guerra, uma comunhão de espíritos acima de tudo. Antelme terá a sua amante e Duras terá também o seu, Dionys Mascolo, que desenvolverá com o casal uma relação de grande intimidade, sendo o melhor amigo de Antelme, o amigo que o irá buscar a Dachau e que lhe salvará a vida. Mas acima de tudo, Dionys Mascolo será o pai do filho de Duras.

Já na velhice Duras chocará o mundo com o seu romance com Yann Andréa, quase 40 anos mais jovem que ela, e que será o seu companheiro nos seus últimos anos de vida.


A escrita de Duras



As obras de Duras são dotadas de um sentido poético pungente, com ambientes criados de forma cinematográfica que evocam sentimentos. Mais do que uma sucessão de acontecimentos, os livros de Duras centram-se em estados de espírito, viagens emocionais que exigem um compromisso por parte do leitor, uma entrega compatível com o desnudar emocional da autora.

A separação entre ficção e realidade é um exercício muito difícil em Duras, que alimenta a escrita da sua vida, das suas percepções, das suas próprias emoções. Não há distanciamento na obra de Duras, que com os anos vai criando uma mitologia em seu torno, alimentada pela realidade ficcionada dos seus livros.

Há sempre figuras femininas marcantes nos livros de Duras. São por norma mulheres que desafiam as convenções, de uma grande força face à adversidade mas de uma enorme fraqueza face à tentação, e por tentação entenda-se desejo sexual. O amor é em Duras uma força destrutiva, uma procura errante por um ideal representada em “O Marinheiro de Gibraltar” ou um sentimento proibido entre pessoas de mundos incompatíveis, como em “Hiroshima Meu Amor”.

Há outros temas recorrentes na sua obra: a mãe dominadora e louca, os irmãos e os sentimentos incestuosos, os judeus e a guerra. Se Duras tem algo por explorar emocionalmente depois da Indochina, a ocupação alemã dar-lhe-á as vivências que lhe faltam. A prisão de Antelme, o tempo sem notícias dele, o envolvimento com um suposto colaborador da Gestapo para obter informações, o profundo desejo de vingança após a libertação e o choque do reencontro com Antelme, com a experiência de Antelme em Dachau, serão matéria-prima inesgotável para a sua escrita, que com o tempo se adensa.

Duras escreve como quem revela um pecado, num tom confessional guiado por uma corrente de consciência que subverte a noção de tempo e de espaço. O exemplo máximo desse estilo será “O Amante”, que lhe valerá em 1984 o Prémio Goncourt, já bastante afastado do estilo fortemente marcado pela influência americana, particularmente de Faulkner, nas suas primeiras obras.


Marguerite Duras na minha vida


A escrita de Duras pertence-me. Sinto-a como minha. É um sentimento mais profundo do que admirar o talento de alguém, é sentir, ao lê-la, que as suas palavras evocam a minha voz, que são uma manifestação do meu ideal de escrita. Há outros escritores que me dizem muito, mas nenhum que me centre tão em mim próprio como Duras.

Duras foi sempre um nome familiar. Não sei quando o ouvi pela primeira vez, mas parece-me que desde sempre este nome me soou a algo familiar. Mas o meu primeiro contacto consciente com a sua obra deu-se algures no final dos anos 90, quando vi “O Amante” pela primeira vez, era então ainda um adolescente. O filme, venerado na Europa e considerado um filme erótico ao nível dos da Playboy nos EUA, tocou-me de forma inesperada. Recordo-me das últimas cenas do filme como se as tivesse visto agora mesmo. A rapariga no barco, como na primeira vez que encontra o amante, a afastar-se lentamente da Indochina, partindo para França. No cais, ao longe, vê-se o carro do amante. Nunca se vê o amante. Apenas o carro. Aquela evocação estática da sua presença é de uma beleza dilacerante. O sentimento de perda domina tudo à medida que aquele último avistamento torna claro que aquela relação não foi um mero jogo sexual, que houve sentimentos profundos que os uniram.

Passariam alguns anos até que eu lesse o livro, o que aconteceria em 2008, nessa altura a versão da Biblioteca Sábado. Li a primeira página e foi como se naquele momento algo em mim que mudasse. Quem lê “O Amante” nunca esquece as primeiras frases, um começo que nos diz tudo, que alberga em si a essência de Duras. Comecei a comprar avidamente livros de Marguerite Duras, mas só há dois anos a voltei a ler, embora tenha relido “O Amante” várias vezes. Li então “O Marinheiro de Gibraltar” que foi até agora o que menos me marcou. Há muitos pontos de interesse no livro, as personagens e a história são interessantíssimas, mas há algo que falha, na fase final, que deixa uma impressão de obra inacabada ou terminada à pressa.

Li recentemente mais dois livros de Duras, “Uma Barragem Contra o Pacífico” e “Hiroshima Meu Amor”, que reafirmaram a sua importância na minha vida. Não sinto pressa de ler tudo dela, quero saborear os livros que me faltam à medida que o tempo passar, redescobrindo-a em diferentes fases da minha vida. O que me leva á questão final: os livros de Marguerite Duras em Portugal.


Portugal esqueceu Duras?


As editoras portuguesas esqueceram-na, sem dúvida. Desde que a Difel, que tinha a quase totalidade da sua obra publicada, se eclipsou, é difícil encontrar os livros de Duras. Durante alguns anos nem “O Amante” se conseguia comprar, tendo vindo em boa hora a edição da ASA Vintage. Há também vários livros de Marguerite Duras editados pela Livros do Brasil, mas cada vez se encontram menos nas livrarias.

O que resta então? Pouca coisa e tudo disperso por várias editoras: 
Relógio D’Água: “Agatha” e “O Navio Night
Estampa:“A Doença da Morte
Europa-América: “A Tarde do Sr. Andesmas” e “A Amante Inglesa
Dom Quixote: “O Marinheiro de Gibraltar
Casa das Letras: “Estação dos Correios da Rua Dupin
Presença: “O Amor
Livros do Brasil: “É Tudo”, “Yann Andréa Steiner” e “O Jardim

Obras emblemáticas como “Uma Barragem Contra o Pacífico”, “Hiroshima Meu Amor”, “Ausância de Lol V. Stein” ou “Moderato Cantabile” desapareceram quase por completo. A Quetzal que em tempos editou “Hiroshima Meu Amor”, “India Song”, “Textos Secretos” e a biografia da escritora da autoria da Laure Adler, deixou-os esgotar sem os reeditar. Só “Textos Secretos” me escapou, os outros três estão na minha biblioteca, junto aos outros 19 livros que tenho de Duras, graças a muita persistência e dedicação.

É de resto uma pena que a Quetzal não aposte em Duras, porque me parece ser uma autora que se enquadra perfeitamente no catálogo da editora. Para já, restam-nos os alfarrabistas e alguns livros esquecidos nas livrarias. É pouco. Duras merecia mais.


terça-feira, 1 de abril de 2014

Em estado crítico: "Uma Barragem Contra o Pacífico" de Marguerite Duras


A força incontrolável do mar e do destino. Por muito que nos enganemos, que nos tentemos convencer de que os controlamos, no final reconheceremos a sua supremacia. Por muito que desejemos que o mundo pare, que um momento se cristalize no tempo e se converta em infinito, a mudança virá e, como uma torrente de água, levará consigo tudo o que encontrar à sua frente. Assim acontece com a família de “Uma Barragem Contra o Pacífico”, uma obra-prima por direito próprio, que apenas não é a grande obra de Marguerite Duras porque muitos anos mais tarde “O Amante” seria escrito, e o que poderia haver de imperfeição no primeiro livro foi obliterado pela pureza aprimorada do segundo.

O ponto de partida para ambas as histórias é o mesmo: uma viúva com filhos para criar decide investir as suas economias numa concessão atribuída pelo governo da Indochina, com a esperança de que a exploração dessa terra seja a solução para os seus problemas financeiros e uma porta para a riqueza. O pior acontece quando percebe ter sido enganada, assistindo indefesa às terras da sua concessão serem dragadas pelas águas do Pacífico durante grande parte do ano, impossibilitando o seu cultivo. Numa tentativa desesperada, manda erguer uma espécie de barragem para conter as águas do mar, sem que o seu propósito seja alcançado. Vê-se então sozinha em plena selva da Indochina, com os seus filhos e sem forma de subsistir, condenada a uma vida de miséria

A irmã, o irmão e a mãe de “Uma Barragem Contra o Pacífico” conhecerão portanto uma nova existência em “O Amante”, mas com algumas diferenças. Nesta primeira história a rapariga, Suzanne, uma personificação de Duras enquanto jovem na Indochina, é menos melancólica e ensimesmada, assim como o irmão é também mais vivaz. A mãe permanece inalterável. Mas fora deste núcleo familiar, há diferenças consideráveis nas duas histórias: em “Uma Barragem Contra o Pacífico” não há irmão mais velho, o irmão cruel que absorverá todo o amor da mãe, e também não há sentimentos genuínos pelo amante. O Sr. Jo, o rico pretendente deste livro, está muito distante da figura sedutora e intensa de “O Amante”, uma figura capaz de fazer uma jovem desesperada sentir amor. O Sr. Jo resume-se ao ridículo e à perversidade, numa existência plena de humilhação e cobardia.

Enquanto em “O Amante” há uma dinâmica entre forças endógenas e exógenas à família, em “Uma Barragem Contra o Pacífico” tudo é a família e, mais que isso, tudo é a mãe, essa mulher louca, tão profundamente destruída pela vida que, começando por ser uma heroína estóica, se torna numa mulher dominada pela injustiça e pela incapacidade de fazer algo, numa mulher que nada mais tem do que os seus dois filhos. E o amor que os une, embora seja um sentimento sobretudo destrutivo (mas o amor em Duras é sempre uma força destruidora), é o ponto criador de equilíbrio e que permite à família sobreviver a tudo. A partida de Joseph, o irmão, há tanto antevista e temida pela mãe, terá por isso uma importância tão significativa, acabando por ser o início do fim e um mero prelúdio do inadiável desfecho da história.

O desejo incestuoso da Suzanne pelo seu irmão, embora nunca seja afirmado de forma peremptória, é neste livro mais presente. No final é por ele que ela espera junto à estrada, em frente da casa, embora queira fazer crer que aguarda por um homem que a leve dali e ao qual se renderia de imediato porque sabe que não é mais do que uma mercadoria sem outra utilidade que garantir o salvamento económico da família.

Suzanne e a mãe desejam, acima de tudo, que o tempo pare e que possam viver eternamente naquele bungalow, construído junto à sua estéril concessão, com Joseph. Os três alimentando um ódio silencioso, estridente aquando dos ataques da mãe, contra as autoridades coloniais que os enganaram, contra os homens ricos que cobiçarão Suzanne e que pensarão que a poderão comprar com o seu dinheiro. Mas esse tempo acabará, sem que nenhuma barragem o consiga evitar, porque no fim apenas haverá a solidão e a certeza de que o destino, como a água do mar, seguirá o seu rumo.

“Uma Barragem Contra o Pacífico” apresenta-nos uma Duras disciplinada, seguindo um modelo mais tradicional de romance, num estilo que, possuindo já os motivos que caracterizariam toda a sua obra, não se encontrava ainda completamente formado. Mas a capacidade de evocar imagens poéticas e de chocar pela profundidade honesta dos sentimentos revela uma escritora com uma capacidade única: a de criar uma história que nos incomoda, nos faz sair do nosso centro e que gera entre nós e as personagens, mesmo aquelas que não nos são muito simpáticas, um elo de compreensão. Um romance maior do séc. XX.

Classificação: 19/20